A Face da Moeda

Artigo elaborado como tréplica do artigo "Veneno não é remédio e pode matar", publicado no Jornal "Correio Popular" de 26/7/2001, e do artigo "A outra face da moeda" publicado também no "Correio Popular" de 02/8/2001, que, apesar de enviado ao mesmo jornal na semana seguinte, não foi publicado, tendo sido alegado pela editoria a falta de espaço.
 

A polêmica adquire visibilidade: “Veneno não é remédio e pode matar”, e o “impacto ambiental negativo (...) não se deve ao seu uso em saúde pública, mas na agricultura, onde se empregaram e ainda empregam, quantidades muito maiores”.

Impacto negativo, na verdade, para ambos, meio ambiente e saúde pública, pois não se faz mal àquele sem fazer a esta.

E a polêmica se amplia com a liberação das agriculturas transgênicas, o concomitante uso extensivo de herbicidas tóxicos para as pessoas e muito tóxicos para o ambiente. Não sei o que poderá ser pior: sementes transgênicas resistentes ao glifosato ou o uso extensivo deste nas culturas, e a conseqüente exposição humana e ambiental.

O tema comparece em Campinas não só quanto ao controle de dengue, à agricultura local de transgênicos, mas também porque ocorreu recentemente uma “desova” de BHC (hexaclorobenzeno) em área pública do município. BHC teve autorização cancelada no Brasil em 1985. Produto perigoso, altamente tóxico e cumulativo nos ecossistemas, banido da produção e comercialização, foi usado “com sucesso” contra as pestilências medievais que continuam sendo um sério problema de saúde pública, que recrudescem nos desequilíbrios antrópicos, entre eles, aquecimento global.

BHC e DDT são inseticidas da classe dos organoclorados, que se incluem entre os 12 sujos: aldrin, bifenilos policlorados, clorano, dieldrin, dioxinas, endrin, furanos, heptacloro, mirex e toxafeno. Em 22 e 23 de maio de 2001 o Brasil assinou o Convênio de Estocolmo sobre contaminantes orgânicos persistentes (POP’s, em inglês), entre demais países do planeta.

A polêmica dos “drin’s” do Recanto dos Pássaros em Paulínia é bem ilustrativa da complexidade do tema, e pode mostrar que a ética planetária poder estar sendo (co)rompida, pela condução técnica ideologicamente afastada da ciência, perturbada pelos interesses econômicos, atenuando-se mais uma grave contaminação ambiental com resíduos perigosos.

O descarte do BHC é criminoso e sua responsabilidade deveria ser severamente apurada. Sua destruição de forma adequada, diga-se, menos danosa ao ambiente e às pessoas, é hoje cara. Sua produção, comercialização ou importação, é crime perpetrado contra a saúde pública e o meio ambiente. Dado importante para a investigação policial: a “desova” é de um isômero gama.

Aplicação de produtos “com sucesso” no passado, hoje banidos, significa fracasso desproporcionalmente maior: não se controlou malária, Doença de Chagas ou dengue com venenos, e se intoxicou cumulativa e globalmente com esses produtos persistentes todos os ecossistemas sensíveis. Esses poluentes estão ligados a defeitos reprodutivos, câncer e outros problemas graves em homens e animais. Os danos são potencialmente grandes, a ponto de se chegar ao protocolo internacional para eliminação total da produção e comercialização em todo o mundo.

No Brasil e em outros países os clorados foram proibidos para a agricultura, com a exceção para uso em saúde pública. O mesmo acordo continua tolerando “por questões humanitárias” a necessidade de uso de DDT para controle de malária na África. Visão imperialista para o controle das pestes dos bárbaros do terceiro mundo.

Enquanto os setores empresariais nacionais e internacionais da agricultura e comércio acatam os regulamentos da proibição de comércio e uso do BHC e DDT, por conta do conhecimento dos malefícios à saúde e meio ambiente, a parcela atrasada da saúde pública continuaria com essa liberdade de uso.

Aqui se revela contradição ético-técnica insustentável: como se admitir a necessidade de interrupção de uso de um determinado produto, ao mesmo tempo em que se afirma que não estaria chegada a hora de eliminá-lo totalmente? É contraditória a admissão de eliminação ou redução de uso de inseticidas em saúde pública, com a manutenção de sua indicação. Quer-se diminuir ou redirecionar o seu uso, é porque alguma coisa deve não ter dado muito certo na tentativa anterior.

O erro se configura claramente: se há suspeita de que o uso indiscriminado com amplas exposições diretas (não através de alimentos), e sem controle adequado de diluição e dispersão, talvez se possa estar causando danos tóxicos ao sistema hematopoiético, ao sistema nervoso, ao sistema imuno-alérgico, com potencial carcinogênico, para os sensíveis ou com propensão genética, constitucional.

A desejada precisão científica para se indicar banimento daqueles produtos, não comparece claramente com relação ao que hoje se usa no controle de dengue. Há uma zona obscura que cumpre à saúde pública rapidamente clarear. Por que nesses anos todos, não se adota protocolo de investigação epidemiológica, ocupacional e ambiental desses agravos? Por quê o controle e vigilância continuam restritos somente a doenças transmissíveis, usando de métodos que potencialmente produzem agravos tóxicos, sem que sejam identificados e nem medidos? Não se investiga se os quadros de “dengue hemorrágico” do país, ou parte deles, seriam, na verdade, manifestações de toxicidade medular óssea, o órgão que produz o tecido sanguíneo.

Outro aspecto grave é que os venenos não estão controlando as epidemias de dengue no país. É notório. Não seria só pelo desenvolvimento de resistências em curso, como se observa em insetos e bactérias. Seria também porque técnicos e população acreditam na eficácia da parafernálica síntese de substâncias químicas, de uma forma quase que mitológica. A culpa da falha do “Programa de Erradicação” recai nas Prefeituras, que pedem mais veneno. Pirotecnia política. Quem distribui veneno colhe doença e não controla epidemias.

Em Campinas estamos convencidos que o modelo químico-paternalista tradicional deva ser substituído para maior eficácia no controle de dengue, e menor agressão às pessoas, ao ar, às águas, aos alimentos. O inseto vetor é uma espécie que vem aprofundando sua antropofilia nos centros urbanos, e é este o ponto vulnerável onde queremos atacar, sem mais demora.

Há que se mudar o comportamento humano para tornar o habitat urbano inóspito ao mosquito. Precisamos de adesão ao modelo ecológico pró-ativo. Acreditar nas pessoas, estimulá-las, mostrar que podemos organizar a sociedade num sentido benéfico comum, como fazem as formigas. Parar de enganá-las com o descontrole dos venenos. Controlar a praga pelo lado natural, e inteligente.