Dengue, Abordagem Ecossistêmica
Carlos Eduardo Cantúsio Abrahão
O cenário epidemiológico da ocorrência de dengue e sua forma hemorrágica agravou-se nas últimas décadas. Expandiram-se a circulação do agente e infestação do vetor, o Aedes aegypti, com número crescente ano a ano de países com casos e óbitos relacionados à pandemia. Ao fim de 2004 é informada uma diminuição significativa em número de casos de dengue no Brasil. Tal fato deve ser observado com cautela ao se considerar as características epidemiológicas dessa doença na ausência da disponibilidade de vacinas, e na sua interdependência com as características entomológicas do mosquito transmissor nos ambientes urbanos em crescente globalização. Ainda que sejam quatro os sorotipos circulantes até aqui identificados, as imunidades adquiridas em massa após as amplas circulações epidêmicas podem ser a evolução natural dessa doença após o esgotamento de suscetíveis. Nova expansão epidêmica pode ser prevista considerando-se a extensão da infestação do vetor no país e o ressurgimento de suscetíveis, caso uma mudança na abordagem do modelo tradicional de controle efetivamente não ocorra. O principal mosquito transmissor encontra-se em adaptação crescente com o homem e a urbanização, e em decorrência da sua biologia e de uma fenomenologia global-local, expande-se ao longo do cinturão tropical do planeta. Considera-se a possibilidade de que o fenômeno de alterações climáticas possa se constituir fator agravante da expansão de doenças tropicais, ao considerá-la decorrência do aquecimento global relacionado a atividades antrópicas (4; 5) determinantes de desequilíbrios na homeostase planetária. Numa visão ampliada, epidemias de dengue seriam mais uma evidência de crise ambiental e social na biosfera. O Aedes aegypti consolidou nas décadas recentes antropofilia ontogenética ao expandir seu nicho ecológico através dos desequilíbrios ambientais e sociais nos países em desenvolvimento. O uso disseminado dos praguicidas nos programas oficiais demonstrou baixa eficácia no controle de dengue, dispêndio vultoso dos escassos recursos, podendo ainda estar agregando desequilíbrios ecológicos e sociais não dimensionados ou contabilizados. A ampla abordagem das epidemias de dengue pela vertente química, com produção de desequilíbrio pela agressão biológica a outras espécies e resistência química do seu inseto vetor, é um ciclo vicioso a ser rompido com a abordagem ecossistêmica. Àquela vertente tradicional se impõe a necessidade desse outro modelo, integrado em rede com a comunidade, mais eficiente para o controle de dengue e outros desequilíbrios de origem humana, globalmente menos custoso para a sociedade, e sustentável social e ambientalmente a médio e longo prazos. A abordagem ecossistêmica propõe a substituição do modelo químico dependente por um formato mais eficaz que, respeitando os sistemas ambientais de suporte à vida, é resultante da ativa ação inteligente e contínua das redes sociais operando em benefício da coletividade e da preservação ambiental. Ao modelo químico-paternalista apresenta-se alternativa ecológica e pró-ativa (figura 1). Figura 1: quadro comparativo entre modelos tradicional e ecológico para dengue.
A expansão na ocorrência de epidemias de dengue em vários países do mundo como o Brasil, evidencia uma situação complexa cujos determinantes impõem a necessidade de aprofundamento na compreensão da ineficácia das tradicionais tecnologias químicas em controlá-las. As medidas que priorizam o combate químico do alado (Aedes aegypti) têm baixíssimo impacto no controle global da epidemia e do seu vetor. Há mais de trinta anos questiona-se a aspersão ambiental de pesticidas para o controle urbano de dengue através da tecnologia que supõe eliminar larvas e alados (8). Com o uso prolongado dessa mesma tecnologia ora questionada, o que se observa é o desenvolvimento de resistência por parte das espécies, e a contínua expansão no número de casos da doença que se propôs controlar em diversas localidades do planeta. Quando o sistema de vigilância em saúde demora a detectar os primeiros casos, as introduções epidêmicas tendem a ser maiores, precipitando amplas intervenções químicas em ambiente urbano. Ampla utilização de nuvens tóxicas de inseticidas e aplicação de larvicidas, inclusive em água que assim deixa de ser potável, acelerou o desenvolvimento dessa resistência e a conseqüente necessidade de se recorrer à substituição de formulações. A aplicação de praguicidas em ambientes abertos foi conduzida ao interior das edificações objetivando atingir o habitat doméstico do mosquito transmissor, oferecendo maior risco às populações expostas aos inseticidas e larvicidas químicos, a cujas exposições admite-se a possibilidade de impactos potencialmente nocivos e desconhecidos de médio e longo prazo, tanto na população humana como de outras espécies do ecossistema. Substâncias químicas artificiais como pesticidas e agrotóxicos vêm sendo sintetizadas desde a década de 1920 com finalidades diversas. "Durante a Segunda Guerra Mundial foram utilizados como arma química, tendo seu uso se expandido enormemente a partir de então (...). No Brasil foram primeiramente utilizados em programas de saúde pública, no combate a vetores e controle de parasitas, passando a ser utilizados mais intensivamente na agricultura a partir da década de 1960. Em 1975 o Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), responsável pela abertura do Brasil ao comércio de agrotóxicos, condiciona o agricultor a comprar o veneno com recursos do crédito rural, ao instituir a inclusão de uma cota definida de agrotóxico para cada financiamento requerido"(7). Em 2004 a política de saúde pública brasileira assegura a compra ministerial centralizada de todos os insumos estratégicos da tecnologia dos praguicidas com a edição da Portaria MS nº 1.172/04 (6), cujos trechos referentes ao assunto em foco são transcritos no anexo ao final do capítulo. Ainda que se deva reconhecer avanços na política ministerial brasileira no sentido do paradigma ecossistêmico, culminando nas campanhas de mobilização social do "Dia D" (20 de novembro) contra dengue, estaríamos numa fase ainda transitória, conforme ilustra a figura 2, pois como se depreende do referido instrumento normativo, há significativa intervenção governamental na provisão de recursos para gastos consideráveis com insumos e infraestrutura destinados à aplicação química de inseticidas e larvicidas. Figura 2: ilustração do aprimoramento de modelos no controle de dengue nos centros urbanos. A trajetória de produção e uso de praguicidas tem se caracterizado por alguns fatos marcantes. Houve progressiva substituição das formulações iniciais tão agressivas quanto persistentes na biota e cadeia alimentar, por formulações que teriam maior "seletividade" e menor persistência ambiental. E a substituição dos poluentes orgânicos persistentes, entre eles praguicidas inicialmente sintetizados da classe dos clorados já amplamente utilizados pela saúde pública, não interromperá sua persistência e efeitos nocivos de logo prazo sobre a população e a biota. A sobreposição dos fenômenos de resistência das pragas aos produtos químicos impulsionou a gênese de novas formulações colocadas no mercado com poucos estudos, principalmente de longo prazo, sobre os potenciais impactos negativos à saúde humana e ambiental. Evidências crescentes trazem o fato de que formulações praguicidas induzem desregulação no funcionamento neuro-endócrino e imuno-humoral dos sistemas vivos, com desdobramentos nocivos presumíveis, alguns já confirmados (1; 2). Dessa forma, essas contínuas aplicações químicas em áreas urbanas, em períodos de transmissão ou endêmicos de dengue, produzem agressão biológica a várias espécies, e no homem ficam evidentes com o problema ocupacional da intoxicação aguda e crônica em aplicadores. Somam-se a um conjunto de vulnerabilidades de indivíduos susceptíveis na população em geral, pois sua contaminação residual de água e cadeia alimentar se agrega às inúmeras e demais substâncias químicas artificialmente sintetizadas pela indústria, e que podem desdobrar-se em alergias e agravamento de patologias pré-existentes, debilidade imunológica e indução do câncer. Não há normas oficiais para busca de eventos adversos nas populações amplamente expostas aos praguicidas da saúde pública, aos potenciais efeitos nocivos de curto, médio e longo prazo nas populações expostas, que não são investigados. Há um Sistema Nacional de Toxicologia no Brasil - SINITOX (3), que acompanha notificações de casos e óbitos de intoxicações agudas e envenenamentos. Em sua série "prevenindo intoxicações", seis são as categorias de intoxicações e envenenamentos abordadas: escorpiões, lagartas, medicamentos, produtos potencialmente tóxicos, plantas tóxicas e serpentes. Nada consta a respeito de programas de saúde pública, pois em suas tabulações verifica-se que o item "agrotóxico" desdobra-se em "uso agrícola" e "doméstico", com "raticidas" em outro à parte. O sistema faz uma compilação de números absolutos dos casos agudos e graves referentes ao atendimento em 32 Centros de Controle de Intoxicações em 18 estados do país, que pouco elucida a real situação epidemiológica da exposição humana a agentes tóxicos na atualidade. Portanto, à ineficácia da tecnologia químico-dependente para o (des) controle do dengue associa-se uma contaminação humana e ambiental que não é sistematicamente procurada, investigada, nem devidamente contabilizada, a partir de sua legitimação. Uma postura pragmática permeia a produção do aparente conforto advindo da extensiva utilização de agentes químicos tóxicos na agricultura, nos lares e na saúde pública, afastando-se da cautela que a aplicação do Princípio da Precaução recomenda adotar. Amplas epidemias de dengue em centros urbanos reforçaram essas tecnologias químicas oferecidas pela propaganda das indústrias no mercado, adotadas pelos órgãos governamentais e demandadas pela população como opção pragmática de controle de pragas, cujo resultado real é a dependência a essas tecnologias e o desenvolvimento de resistência nas espécies alvo. A ineficácia e descontrole decorrentes do enfoque centrado na abordagem química acarretam um conjunto de inadequações que resultam na distorção das necessárias ações de comunicação e educação, de controle epidemiológico, entomológico, sanitário, ocupacional e ambiental. A abordagem química é indutora de não mudança de comportamento da comunidade em relação a criadouros do Aedes aegypti. A necessidade de intervenção na ecologia urbana do vetor fica relegada a um segundo plano, como linha de ação acessória, quando se induz acomodação no comportamento das pessoas ao receberem aplicações e fumigações químicas assumidas como eficiente medida governamental. Decorre daí um enfraquecimento na efetiva eliminação de criadouros ou no saneamento do meio, pela crença na eficácia dos venenos. Exemplos ilustrativos são o caso das atividades comerciais como borracharias e ferros-velhos que não corrigem as irregularidades sanitárias de seus estabelecimentos, alegando que guardas sanitários passam quinzenalmente aplicando venenos contra a proliferação de insetos nocivos, ou o caso da aplicação de larvicidas em caixas d'água e vasos de plantas, desviando a correção na origem do problema. Configura-se aí a vertente paternalista do modelo que necessita se transformar. A indisponibilidade de vacinas, a diversidade viral e a interferência de um inseto vetor cuja dinâmica ecológica recebe direta influência de desequilíbrios de origem antropogênica, abrem um leque de fatores e variáveis nas circunstâncias sociais e ambientais dos locais atingidos por dengue, cujo reconhecimento se torna imprescindível para se obter eficiência nos programas de controle que independam da abordagem dos praguicidas. Mudanças demográficas nos centros urbanos resultaram em significativos contingentes populacionais morando em sub-habitações, com sistemas precários de abastecimento de água e saneamento ambiental muitas vezes inexistente. Comportamentos ambientalmente desfavoráveis, com oferta de inúmeros criadouros em ambientes domésticos, destinação inadequada de lixo e resíduos de uma forma geral, constitui-se a base para a expansão do habitat urbano do mosquito vetor e o foco principal a ser abordado. Consolida-se na atual etapa do conhecimento, e a partir da experiência de diversas localidades, a necessidade de revisão do enfoque tradicional do modelo tecnológico de intervenção adotado pelos escritórios oficiais e oferecido como política hegemômica para o controle de dengue em vários países. Constroem-se alternativas mais adequadas e eficientes porque abordam o problema na sua real complexidade, atingindo-o em sua raiz.
É necessário decisiva ação nos determinantes socioambientais dos desequilíbrios urbanos causadores da infestação por Aedes aegypti, revertendo a tendência inercial dos grandes conglomerados urbanos em largamente propiciar a existência de criadouros, tendo por objetivo a progressiva redução dos níveis de infestação, a partir da rede ativa de educação-ação: intervenção coletiva no controle ecossistêmico do risco de epidemias de dengue. Uma rede de elaboração participativa em projeto interdisciplinar e trans-setorial com base local pode se utilizar de instrumentos de construção da Agenda 21 local, do Plano Diretor previsto no Estatuto da Cidade, nos conselhos de participação e controle social, particularmente o Sistema Único de Saúde (SUS) e Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA), de comunidades (potencialmente) saudáveis, de promoção de saúde, do cuidado global a partir do desenvolvimento local integrado e sustentável (DLIS). Essa rede pode se beneficiar do diagnóstico e planejamento compartilhados da situação epidemiológica e controle de dengue. Quais diretrizes se reforçam ao se banir os praguicidas definitiva e completamente dos programas governamentais de saúde pública para controle de dengue? Controlar a sua incidência endêmico-epidêmica através de uma vigilância em saúde eficaz e de intervenção social-ambiental ecológica e sustentável, tendo como objetivo o inseticida "zero". A efetiva e sustentada mudança do habitat que inviabiliza a infestação do Aedes aegypti em centros urbanos, a partir do conhecimento de sua biologia e de uma rede inteligente e descentralizada de controle, é assegurada por comportamentos individuais, coletivos e governamentais favoráveis, principalmente no que diz respeito às medidas de vigilância e saneamento ambiental. O conhecimento e acompanhamento dos níveis de infestação de Aedes aegypti que devem rapidamente ser trazidos e mantidos próximos a zero exclusivamente por meios mecânicos, podem ser obtidos através do trabalho de agentes dos programas de saúde da família desempenhando assim papel estratégico. O conhecimento precoce da circulação viral com a manutenção de bom sistema de suspeita e investigação de casos de dengue, para prevenção de novas contaminações, em intervenções precoces através de meios físicos e mecânicos quando da descoberta dos primeiros casos, torna imprescindível um sistema municipal de vigilância epidemiológica ágil e atuante para dengue e outros agravos. Para se avançar em controle das pestes urbanas emergentes, há que haver uma incisiva intervenção coletiva a partir dos poderes públicos, com apoio e ação da sociedade na construção de cidades mais saudáveis, de forma a modificar a ecologia urbana que facilita a sua expansão.
PORTARIA Nº 1.172, DE 15 DE JUNHO DE 2004 Regulamenta a NOB SUS 01/96 no que se refere às competências da União, Estados, CAPÍTULO I Seção II Seção III
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