Saúde e Qualidade Ambiental
Artigo publicado no jornal Correio Popular de Campinas, no contexto do dia da água (22/3). Em 27/3/2007. Opinião. |
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“O tempo nunca retorna, a água sempre regressa...”
(Domingos P. Cegalla)
Esses conceitos que o mestre Cegalla nos relembra são interessantes para o tema da água nos tempos atuais do contexto planetário.
Do recém-divulgado relatório do painel intergovernamental sobre mudança do clima (ONU, fevereiro de 2007) depreende-se já ser tardo o tempo para que decisões políticas e econômicas no sentido de se “parar” de aquecer o planeta surtam algum efeito preventivo de catástrofes anunciadas, e já em processo de instalação. Já estaríamos assim num caminho sem volta.
As moléculas da “água que sempre regressa”, dando suporte à vida no planeta Terra, são as mesmas desde os primórdios, e cumprem assim seu papel no ciclo vital cotidiano, ao circular entre os seres animados, veiculando tudo o que nutre os sistemas vivos, mas também agentes que os agridem.
O desenvolvimento tecnológico agrega às águas e alimentos, de forma cada vez mais intensa e sem controle, um sem-número de produtos químicos biologicamente ativos, em alguns casos radioativos, todos resultantes de transformação e uso “inteligente” de substâncias, mediante o domínio, exploração e transformação dos recursos naturais, e com extensivo uso de matéria e energia.
O esgoto doméstico, efluentes e resíduos urbanos e de indústrias, os produtos empregados nas atividades agrícolas (resíduos de agrotóxicos também presentes diretamente nos alimentos), as infiltrações no solo, além do que é carreado das diversas fontes de poluição do ar, com as chuvas, e veiculado através de produtos industrializados, levam à contaminação das águas, alimentos, domicílios e ambientes de trabalho. São substâncias como metais pesados, hormônios, antibióticos, inseticidas, pesticidas, agrotóxicos ou derivados de petróleo, para citar os mais importantes do ponto de vista do potencial de agressão biológica.
Os desdobramentos para a saúde pública e ambiental desse processo em longo prazo, são em parte reconhecidos e em parte ainda desconhecidos, e preocupam quanto à sua agressividade, pois os limites de exposição, manejo e gestão (o que também se aplica no caso de campos eletromagnéticos) são construídos para que se evitem intoxicações e efeitos de caráter agudo, em curto prazo.
Exposições simultâneas de agentes e contínuas (em longo prazo), mesmo que em baixíssimos níveis, podem ser nocivas aos seres mais vulneráveis, e a epidemiologia oficial não tem permitido deixar clara a agressão dessas conexões múltiplas (químicas, físicas — radiações de campos eletromagnéticos cada vez mais abrangentes — além das biológicas).
A temática química veio à tona inicialmente no livro Primavera Silenciosa (Raquel Carson, 1965), onde apresenta de forma biologicamente bem fundamentada, inúmeros casos verificados de profundos desequilíbrios ecológicos, decorrentes de extensas pulverizações agrícolas com aviões, nos EUA do pós-guerra, de produtos tóxicos e cumulativos na natureza, alguns banidos, mas ainda hoje persistentes utilizados para o controle de doenças e pragas (ex. POPs, DDT).
Em 1996 outra publicação atualiza o trabalho de Carson (O Futuro Roubado, L&PM Editores). Nele, os autores divulgam pesquisas científicas da contaminação hormonal do ciclo da água e da cadeia alimentar, oferecendo a hipótese de sua interferência na chamada desregulação endócrina. Sabemos que hormônios são moléculas complexas, de baixo peso molecular, que têm papel fundamental na regulação fina do funcionamento dos organismos, mesmo em baixas concentrações. Hormônios sintéticos como os estrógenos produzidos pela indústria farmacêutica, têm se mostrado ambientalmente estáveis, e persistentes em níveis infinitesimais, ao serem eliminados pelos seres humanos pelas fezes e urina após seu uso medicamentoso.
Suecos acabam de criar um indicador de concentração de medicamentos nas águas, envolvendo sua persistência, toxicidade e bioacumulação, instando ao médico prescrever aqueles com os menores índices.
Em dezembro de 2006 o Parlamento Europeu (PE) aprovou o regulamento Reach sobre o registro, a avaliação e a autorização de produtos químicos deverá entrar em vigor em junho deste ano, sendo diretamente aplicável em todos os estados-membros da União Européia.
Nas palavras do relator da Comissão do Ambiente do PE, Guido Sacconi, “a finalidade primeira do Reach é a substituição de substâncias extremamente problemáticas por substâncias ou tecnologias alternativas mais seguras”. Encontrar um equilíbrio entre as obrigações a impor à indústria e a necessária proteção do ambiente e da saúde foi o principal desafio colocado às instituições européias na elaboração dessa legislação.
A divulgação de uma dissertação de mestrado (Correio, 6/12/2006) elaborada junto ao Instituto de Química da Unicamp, tratando da detecção de derivados de fármacos, hormônios sexuais e produtos industriais na água consumida pelos campineiros, traz preocupação com os desdobramentos na saúde pública. Nos seus esclarecimentos observa-se que a empresa operadora do tratamento é primorosa em qualidade de procedimentos e no atendimento à norma brasileira para potabilidade da água, ao transformar água bruta densamente poluída em água potável..
Deve-se salientar aqui exatamente o fato de a água tratada por uma das melhores empresas de saneamento do País conter aqueles resíduos pesquisados, ainda que em níveis infinitesimais. As águas de Campinas, como um centro tecnológico de ponta, refletem um problema ambiental que não é só de Campinas, mas de todo o planeta. Espera-se que os achados em suas águas evidenciem aos órgãos de controle sanitário e ambiental do País a necessidade de incorporar em nossas normas o rigor que o compromisso com a saúde ambiental e o das gerações futuras já exige.
Carlos Eduardo Cantúsio Abrahão é médico, sanitarista, presidiu o Conselho de Meio Ambiente de Campinas entre 2001 e 2003.