A Arte Reduzida a Pó

Artigo originalmente publicado no Correio Popular em 01 de outubro de 1998, modificado em fevereiro de 2000, no contexto das falsificações e fraudes com medicamentos no país
 

A sujeira acumulou-se tanto que o tapete ficou curto: fraudes e falsificações, cartel, lucros bilionários deslavadamente remetidos ao exterior, sonegação de impostos, automedicação e propaganda enganosa ... assédio imoral à corporação profissional prescribente.

Um hipócrita sistema de controle burocrático sanitário alimentou um vigoroso câncer que cresce em meio a arte médica e escancara a esperteza lucrosa, que vende pílulas para tratar a melancolia da alma humana face à dor e ao sofrimento impostos pela doença e pela morte.

O fascínio exercido sobre o ser humano pelas poções mágicas descamba para a magia negra da química fina dos medicamentos e dos produtos tóxicos aqui no Brasil, onde o saber médico e o imaginário popular são conduzidos no sentido do uso e abuso.

A arte de Hipócrates encontra-se vilipendiada ante a à parafernália tecnológica e interesses econômicos. Despersonaliza-se a relação médico-paciente no absolutismo do suposto benefício mútuo, exercido pelos avanços tecnológicos que banalizam o saber clínico tragando vultuosos recursos, esses cada vez mais escassos para a depauperada maioria da nação. Médicos atônitos tentam salvaguardar sua arte, mas o aparelho formador ("sensu lato") é o primeiro a conduzir a formatação tecnológica dos profissionais aos interesses desse mercado. Montante significativo de recursos do SUS no país é sorvido por essa concepção tecnológica.

Terapêuticas "alternativas" pululam na disputa da hegemonia do alento ao e sofrimento da humanidade. Curandeiros e mercadores proliferam-se oferecendo poções mágicas para matar a fome de uma vida com menos dor e mais saúde. O academicismo é arrebatado pela voluptuosidade interesseira, que atropela os rigores da ciência e da arte.

A tecnologia terapêutica hegemonizada pela química fina e banalizada pelo interesse econômico degenera-se na escancarada falsificação dos medicamentos no Brasil. Não seria por acaso que fraudadores viessem buscar a ocasião: o filão faz o cartel.

O complacente licenciamento de formulações pelo cartório estatal nos últimos anos, a distribuição pela vigorosa rede de comércio espalhada, a fiscalização burocrática perdida em papéis, ministros e autoridades, todos como que "tomados de assalto" pela sucessão de suspeitas de crimes. Ponta de iceberg.

Políticos e poderes públicos subservientes aos desmandos da poderosa máquina de fazer dinheiro encontram aí excelente oportunidade para demagogia, acionando os paladinos da justiça a condenar por crime hediondo o lado podre, salvaguardando em contrapartida no entanto os portentosos interesses econômicos que hoje orbitam em torno da arte de curar, agora globalizada.

Veja como não se coibe a crescente e descarada propaganda de medicamentos e correlatos. Tenta-se controlar a auto-medicação no balcão da farmácia através de ineficiente mecanismo corporativo-fiscalizador, ao mesmo tempo em que se é conivente com a massiva venda e consumo indiscriminado de medicamentos e produtos tóxicos a partir da propaganda na mídia em geral.

Um mecanismo estratégico de propaganda ajudou a encurtar o tapete: amostras grátis, que não são grátis. Seus custos são repassados ao produto, que eleva o preço dos medicamentos no mercado. Sem controle, aparecem ao lado de falsificações atravessadas pelo comércio ilegal afetando principalmente a população mais carente.

Dar e receber amostras grátis passou naturalmente a fazer parte do cotidiano, reforçando o poder corporativo com um pesado esquema de "marketing", financiamento de atividades científicas e presentes interesseiros. No dia-a-dia a clínica do médico é forçada a se "atualizar" com o bombardeio dos "novos lançamentos" conformando a ciência e a arte a partir desssa gratuidade amoral.

Médicos, dentistas e veterinários são habilmente manejados com amostras grátis desde a sua tenra infância acadêmica. Logo nos primeiros anos permite-se um assédio que configura a simbologia do vir-a-ser do profissional, inculcando um potente "modus operandi" no saber e fazer terapêutico formal. O uso e a mídia para produtos tóxicos devem também ser caso para exame detalhado imediato, à luz de profunda reflexão ecológica.

Não haverá vigilância que dê conta da monstruosidade criada, sem que corajosamente se desmonte toda a trama globalizada na perspectiva dos interesses da preservação e promoção da saúde da humanidade.

Há a necessidade de outras medidas subsequentes à implantação dos genéricos. A quem pode interessar, por exemplo, que permaneça incólume a florescente propaganda de medicamentos? Por que não baratear o custo dos medicamentos acabando com amostras "grátis" e a propaganda enganosa? Por que não tornar transparentes os custos de insumos e produção da fabulosa máquina de fazer dinheiro? Por quê não abrir, já, a discussão que respeitáveis pesquisadores passam a trazer no caso da exposição humana e ambiental a produtos tóxicos e potencialmente tóxicos, cada vez mais largamente produzidos e licenciados no Brasil?

Há que se erradicar o mal em sua raiz: políticas públicas deveriam propiciar o afastamento da "arte de curar" e de todas as tecnologias de atenção e prevenção das doenças, das bestiais leis de lucro e mercado, na perspectiva da promoção da saúde coletiva.

Texto em outubro/1998:

A sujeira acumulou-se tanto que o tapete ficou curto.

Um hipócrita sistema de controle sanitário alimentou um vigoroso câncer que cresce em meio a arte médica e escancara a esperteza lucresca que vende pílulas para tratar a melancolia da alma humana frente à dor e ao sofrimento impostos pela doença e pela morte.

O fascínio exercido por sobre o ser humano pelas pílulas mágicas descamba para a magia negra da química fina dos medicamentos no Brasil. O imaginário popular é poderosamente manipulado no sentido do uso e abuso de medicamentos.

Políticos e poderes públicos subservientes aos desmandos da poderosa máquina de fazer dinheiro encontram aí excelente oportunidade para demagogia, acionando os paladinos da justiça a condenar por crime hediondo o lado podre, salvaguardando em contrapartida no entanto os portentosos interesses econômicos que hoje orbitam em torno da "arte de curar".

A arte hipocrática encontra-se vilipendiada em meio à parafernália tecnológica e interesses econômicos. Despersonaliza-se a relação médico-paciente em absolutização de suposto benefício mútuo exercido pelos avanços tecnológicos, que traga sofregamente o saber clínico e vultosos recursos cada vez mais escassos para essa área social.

Médicos atônitos tentam salvaguardá-la mas o aparelho formador é o primeiro a se curvar competentemente aos mandos e desmandos dos interesses econômicos que a solapam. Terapêuticas "alternativas" pululam na disputa da hegemonia do alento à dor e sofrimento da humanidade. Curandeiros e mercadores proliferam-se oferecendo poções mágicas para matar a fome de uma vida com menos dor ou mais saúde.

A tecnologia terapêutica hegemonizada pela química fina e banalizada pelo interesse econômico degenera-se na escancarada falsificação dos medicamentos no Brasil. Não seria por acaso que fraudadores viessem buscar o filão: ocasião faz o ladrão.

O complacente licenciamento de formulações pelo cartório estatal, a distribuição pela vigorosa rede de comércio espalhada, a fiscalização burocrática perdida em papéis, ministros e autoridades, todos "tomados de assalto" pelo crime que agora guindam a hediondo. Ponta de iceberg. No esquema não desmontado, era de se esperar.

Veja como se autoriza a crescente e descarada propaganda de medicamentos e correlatos. Tenta-se coibir auto-medicação no balcão da farmácia através de ineficiente mecanismo corporativo-fiscalizador, ao mesmo tempo em que se é conivente com a massiva venda e consumo indiscriminado de medicamentos na mídia em geral, às vezes dubiamente apresentados como alimentos.

Um mecanismo bem safado de propaganda ajudou a encurtar o tapete: amostras grátis, que não são grátis. Seus custos são repassados ao produto, que eleva o preço dos medicamentos no mercado. Sem controle, aparecem ao lado de falsificações atravessadas pelo comércio ilegal afetando principalmente a população mais carente.

Médicos e veterinários são habilmente manejados com amostras grátis desde a sua tenra infância acadêmica. Logo nos primeiros anos se permite esse assédio que conforma a simbologia do via-a-ser do médico, inculcando um potente "modus operandi" no saber e fazer terapêutico oficial.

Dar e receber amostras grátis passou "naturalmente" a fazer parte do cotidiano do médico, reforçando seu poder corporativo com um pesado esquema de marketing e financiamento. No dia-a-dia a clínica do médico é forçada a se "atualizar" com o bombardeio dos "novos lançamentos" conformando a ciência e a arte a partir desssa gratuidade amoral. A academia é arrebatada pela voluptosidade interesseira, que atropela os rigores da ciência e da arte.

Não haverá vigilância que dê conta da monstruosidade criada sem que corajosamente se desmonte toda a trama, na perspectiva dos interesses da grande maioria. Há de fato a necessidade de inúmeras outras medidas subsequentes à caracterização hedionda. A quem pode interessar por exemplo incólume a florescente propaganda enganosa de medicamentos? Por que não baratear o custo dos medicamentos acabando com amostras "grátis"?

Fazer farmacovigilância sim, mas com diretriz política que conduza ao firme propósito de erradicar o mal em sua raíz. Políticas públicas deveriam propiciar afastar das bestiais leis mercado, a arte de curar.

Na rede pública do Sistema Único de Saúde (SUS) em Campinas amostras grátis estão proibidas de circular antes de passarem pela Comissão Permanente de Avaliação, Normatização e Padronização de Insumos, Materiais e Medicamentos, onde recebem um selo com "SUS Campinas - distribuição controlada" para inclusão entre os produtos distribuidos.