Dengue e Ecologia Urbana

Publicado na Folha de São Paulo - caderno Campinas - na edição de 23 de janeiro de 1998, com título "Dengue e Ecologia".
Artigo em co-autoria com Ovando José Provatti, biólogo do Centro de Controle de Zoonoses da Secretaria de Saúde de Campinas.
 

As políticas de assentamentos humanos insistem em acentuar desequilíbrios urbanos através do extenuante desgaste do adensamento das cidades.

Olhando do ponto de vista de saúde pública, adensar os grandes centros urbanos de uma forma completamente descontrolada, como reflexo de políticas, carências e disparidades nacionais globais, significa revigoramento da gênese de epidemias, marcadamente como dengue, tuberculose, leptospirose, ou AIDS..., ou para além das tradicionais transmissíveis, acidentes e violências.

O caso da epidemia de dengue que agora chegou como que “querendo ficar” nesta faixa subtropical em que se situa Campinas, ilustra bem as possibilidades de desequilíbrios antropogênicos mais ou menos globais que se tem verificado nestes acelerados anos de transição do milênio.

O principal mosquito transmissor - Aedes aegypti - habita o planeta desde muito antes do homem e por razões de sua biologia, expande-se com ele ao longo do cinturão tropical do planeta. Entra provavelmente no Brasil com a colonização e é em 1685 o ano em que se tem registro de uma grande epidemia de febre amarela urbana no Recife.

Sua expansão urbana pelo país culmina com as grandes epidemias de febre amarela que, às custas do martírio de Oswaldo Cruz, desencadearam o impositivo controle sanitário urbano em grandes e florescentes cidades desenvolvimentistas como Rio de Janeiro, São Paulo, Ribeirão Preto ou Campinas.

Ainda que com outros ganhos e perdas, sofrimento e prejuízos para todo o país, de fato essas epidemias marcam momentos de transformações corretivas de realidades higiênico-ambientais nocivas em vários momentos da história.

As práticas e concepções de intervenção higienista tiveram desdobramentos que permitiram autoridades anunciarem em 1957 a “erradicação” da espécie no país. No entanto, a soberba positivista desta afirmação se desfez com o reconhecimento quase imediato de sua “reintrodução” na década seguinte, permitindo o alastramento recente e atual das epidemias e endemias de dengue no rastro da sua incontrolável infestação pelas cidades.

Há quem hoje ainda cometa a ingenuidade ou irresponsabilidade de anunciar que poderá novamente realizar a façanha de “erradicar” - e não controlar - uma espécie de inseto vetor, cuja ancestralidade é bem maior que a do homem. Ele nos acompanha há séculos, e reafirma sua antropofilia urbana ao se expandir tanto mais avassaladoramente quanto mais nossos ambientes urbanos estão a propiciar.

Diferentemente da febre amarela - doença para a qual já se dispõe de boa vacina, controlar dengue nos grandes centros não depende de um quase heróico sistema de saúde atendendo a uma população cada vez mais acometida e sujeita a riscos, simplesmente acorrendo ao rastreamento precoce das áreas e relações de transmissão entre as pessoas.

Na falta da vacina, o instrumental tradicional da saúde pública é completamente limitado e depende da pronta detecção dos casos de dengue, dado que a pressão de dispersão e ocupação do mosquito vetor não vêm sendo contidas. Se o sistema de saúde demorar para detectar os primeiros casos, as introduções epidêmicas tendem a ser maiores.

Também não se observa grande eficácia nas intervenções químicas focais em torno do mosquito, dado que tem havido um pernicioso ciclo de produção e reposição incontrolável de criadouros e resíduos nos ambientes urbanos, caracterizado pelo comportamento humano em relação a eles, que os produz e os disponibiliza cotidianamente.

Há uma crescente preocupação entre os técnicos com o desenvolvimento de multiresistência e novas adaptações por parte dessas espécies que acabam afetadas pela vertente do manejo com inseticidas e larvicidas.

Centros urbanos estão a propiciar re-infestação de pestes porque o equacionamento das soluções dos problemas sócio-ambientais de determinado tipo de desenvolvimento está distante ainda de atingir o que seria já hoje mais recomendado e ambientalmente correto.

Para se avançar em controle das pestes urbanas reemergentes, há que haver uma incisiva intervenção coletiva, capitaneada pelos poderes públicos mas com apoio e ação de todos os que querem construir um desenvolvimento sustentável e cidades mais saudáveis, e incisivamente apoiada por toda a sociedade, de forma a modificar essa ecologia urbana que facilita a sua expansão.

No caso do Aedes aegypti, ainda o principal transmissor de dengue em nosso meio, continuará havendo infestação na exata medida em que a espécie humana e sua ecologia urbana assim o permitirem.