Vacinas Não Controlam Epidemias de Acidentes e Violências

Artigo originalmente publicado na Folha de São Paulo em 13/12/1991.
 

Recentemente fui indagado acerca do tratamento de indivíduos com AIDS ou sorologia positiva para o vírus através da homeopatia.

E aí, pus-me a pensar sobre algumas posturas humanas frente à morte, à doença incurável, ao sofrimento coletivos das grandes epidemias.

Um dos anseios da humanidade hoje é a vacina contra a AIDS. Vacinas. Em que pesem controvérsias existentes entre concepções terapêuticas e profiláticas, não há mais dúvida quanto à eficácia de determinadas vacinas hoje disponíveis, com uma das exceções para a AIDS.

O que temos é o avanço da pandemia trazendo consigo novidades, arcaísmos, curiosidades, mas, antes de tudo as perdas, o sofrimento, os preconceitos e mitos, e a discriminação descomunal. "Se você não se cuidar a AIDS vai te pegar"! Homeopatia para controlar epidemias?

Epidemias, assim como as guerras, têm as suas raízes, seus entrelaçamentos entre si, e costumam deixar cicatrizes. Situações epidêmicas incitam alternativas de soluções mais ou menos rápidas e eficazes, dependendo de variados fatores, entre eles a disponibilidade de conhecimento e tecnologia, os interesses econômicos e políticos quase sempre envolvidos, os possíveis desdobramentos no ideário mítico, cultural e comportamental das populações afetadas ou potencialmente afetadas, e assim por diante.

A civilização humana vem apresentando suas várias alternativas para o enfrentamento e controle de epidemias, da devastação e mortandade associadas às guerras e catástrofes.

De fato estamos vivendo epidemias e guerras no final do século XX. A varíola foi considerada e mantém-se erradicada desde outubro de 1977, erradicação oficialmente assumida em 1980. Efeméride na saúde pública? Pode ser, mas urge alardear o descalabro da realidade de vida e saúde de amplas massas, que, com a evidência de continuarem sua expansão, apresentarão novos desafios na virada do século.

Queimar cadáveres é empirismo ancestral que se usou para se tentar controlar a disseminação de pestes. Hoje em dia é difícil você convencer alguém numa família enlutada de que não é necessário atear fogo nos conchões e pertencentes do falecido por AIDS para se evitar a disseminação. Por ação ou omisão parecem vigorar idéias de que "ninguém vai continuar mesmo aí" com preocupações e atitudes para evitar situações e comportamentos de risco; quem tem que se cuide, e demais, responsabilidades coletivas que fiquem por conta do AZT estatal.

Ao se tratar os portadores de agentes patogênicos como agentes patogênicos em si, não se está controlando a disseminação de pestes. Imagem espetacular de assumir que se vai controlar a disseminação de cólera na América Latina hoje.

Haveremos talvez de nos lamentar se a expansão da sétima pandemia de cólera pelas Américas não se constituir em mais que a denúncia. Vacina contra ela já é um dos desafios para a "nova ordem mundial" com seu "desenvolvimento sustentável".

Mas que não se "esqueçam" da soluções definitivas para o destino adequado de todos os dejetos e resíduos da humanidade. Atenuação das inúmeras violências. O conhecimento e a educação, a cultura, o prazer e a saúde podem ajudar a controlar epidemias. Vacinas, por exemplo, não controlam as epidemias de acidentes e violência.

A seguir veja a arte sobre o texto: