A Equação do Lixo

Artigo originalmente publicado no Jornal "Correio Popular", em 20 de agosto de 1999.
 

Os custos com o lixo das cidades tenderá a pesar no bolso do cidadão e da sociedade, a depender da maneira como se equaciona a sua produção, coleta e destino final, e mais, ao se agregar os custos com a atenuação dos impactos ambientais das soluções tecnológicas em vigor.

Ao prevalecer o ritmo de produção de resíduos dos últimos anos, e não mudadas algumas soluções hegemônicas, está se armando para nós e nossos descendentes uma "bomba" de efeitos imediatos, mediatos e tardios que começa a espoucar: esgotamento acelerado das últimas áreas disponíveis para deposição de lixo no solo, significativos impactos ambientais não devidamente mitigados nos aterros, proliferação de áreas irregulares e descontroladas de disposição, pressão de ocupação habitacional por sobre e nas envoltórias de restrição de aterros e lixões, espalhamento de lixo com crescentes repercussões negativas para a saúde pública e ambiental, catação desordenada e garimpo irregular nos aterros somente coibido pela força policial, e intensa contaminação quando os impactos nocivos da operação dos aterros não permite enquadrá-los como sanitários ou controlados.

Há medos e mitos humanos relacionados à produção de rejeitos, como o de fazê-los "desaparecer" jogando-os em "botas-fora", ou em margens de córregos e rios, ou os queimando a céu aberto. Nesses casos o mito deve ser abandonado porque é verdadeiro o princípio de que "na natureza nada se perde, tudo se transforma", no caso em proliferação de agentes biológicos nocivos, em poluição das águas e contaminação do ar, além do absurdo desperdício. O medo também aparece, quando greves de garis configuram a ameaça do caos urbano com o lixo não recolhido, o que precipitou aqui e em vários outros municípios do país a privatização do setor.

Hoje de fato sem greves, temos uma solução cosmética e paternalista, que tira o lixo da frente do cidadão e o deposita de forma ambientalmente descompromissada, num local confiscado pelo interesse do coletivo. Coletado por garis trabalhando em condições ocupacionais adversas, o lixo urbano é transportado e depositado no aterro que se desejaria sanitário, e o serviço de coleta e transporte é pago pelas taxas recolhidas do contribuinte pelo poder público mediante quilometragem percorrida e peso do caminhão na sua entrada no aterro. Os resíduos da construção civil, sem nenhuma política de minimização da produção ou reciclagem, vêm se espalhando em "botas-fora", que para a saúde pública e ambiental rapidamente transformam-se locais de risco.

Os caminhões compactadores de lixo utilizados misturando tudo, anulam de imediato o valor potencial do reaproveitamento de resíduos orgânicos, que de outra forma seriam compostados, e dos inorgânicos, que seriam reciclados.

Ao desperdício soma-se o fato de que algumas pessoas ao não colaborarem, queimam, espalham lixo em terrenos baldios e ribanceiras dos rios, abrindo inúmeros outros "botas-fora", que para a consciência ambiental é uma expressão contraditória, pois que nada se dispõe fora do planeta.

As regras acordadas permitem uma equação de lucro com essas tecnologias tradicionais de absolutização do uso do solo, fortemente baseadas na criação de um significativo passivo ambiental. O poder público recebe por essa deposição em aterro recursos arrecadados com os depositários no Delta, recursos esses que vêm sendo absolutamente insuficientes para bem operar e recuperar os impactos sociais e ambientais negativos de sua operação.

A "solução" pressupõe a desatinada fantasia de que essas áreas para aterro seriam infinitas, camuflando-se na realidade que, além de estarem rapidamente se esgotando, contaminando o meio ambiente e desvalorizando o seu entorno, acumulam impactos que potencializam os custos do seu adequado manejo.

Como agravante, o horizonte temporal político e econômico é bastante curto do ponto de vista da economia globalizada e sua relação com a saúde planetária, e costuma considerar que se existe área para deposição em aterro por mais 20 anos, então esse não é um problema a ser priorizado hoje. Ledo e arriscado engano.

Conforme forem se esgotando as áreas municipais destinadas à deposição de quantitativos crescentes de resíduos, os custos globais aumentam em razão direta e exponencial. Os paulistanos por exemplo já são reféns da falta de espaço geográfico para aterros, e face aos irrisórios percentuais de reciclagem e compostagem lá atingidos, têm agora que pagar mais caro para "digerir" as suas escórias nos vorazes incineradores de lixo, e de dinheiro, agregando mais e mais poluentes ao já tão combalido ar que respiram.

Se agregarmos aos custos desses serviços contratados, os custos da terra a se indenizar e os da que se desvaloriza, os da atenuação dos impactos ambientais em vigor, e ainda mais o lucro que movimenta as corporações, vislumbramos uma conta bem "salgada" para o conjunto da sociedade "empobrecida", para uma solução tanto cara quanto depredatória, e socialmente insustentável.

É um total contrasenso à consciência planetária o que estamos fazendo com o lixo. O que temos visto nessas grandes sociedades urbanas de consumo, de pobreza, desemprego e concentração de renda é um grande desperdício perdulário e poluente de matérias primas e energia, que nós já estamos pagando, e se não se mudar rapidamente esses rumos, mais caro ainda ficará para nós e as futuras gerações.

Pergunto do por quê persistir a posição em alguns setores, de que coleta seletiva de lixo é cara e na prática implanta-se timidamente, quando há cada vez mais pequenos grupos querendo ajudar na "limpeza" em benefício à sua sobrevivência? Por que Campinas tem hoje zero por cento de compostagem de resíduos orgânicos urbanos, ou seja, ele é totalmente depositado sem nenhum reaproveitamento para a agricultura? O por quê de não se priorizar uma implantação organizada de cooperativas de recicladores sendo Campinas a nona cidade que mais consome no país e a segunda no Estado após a capital, segundo pesquisas recentes (Correio Popular de 15/8/1999).

Há que se inverter a equação: aplicar recursos sim, mas de forma estratégica, para um resultado global satisfatório e sustentável, maximizando-se as possibilidades de "tirar dinheiro do lixo", ao invés de enterrá-lo. Tirar dinheiro do lixo trazendo benefício social, dando sobrevida a cooperados autônomos e vitalidade a microempresários, empresários, comerciantes, enfim, ao conjunto da economia local e regional.

Conduzir direta e indiretamente a todas as macro-soluções que prolonguem a vida útil do Complexo Delta, com a ampla e efetiva separação do lixo nas residências, de forma que se obtenha compostagem e reciclagem rentáveis de resíduos, bem como a melhor operação e atenuação dos impactos ambientais já instalados, seja pelas vias administrativas que melhor couberem, terceirizando, concedendo, contratando ou estabelecendo parcerias.

Para aqueles que com fome argumentam não estarem roubando ao garimpar as sobras da sociedade, é absurda a visão de alimentos, produtos como o alumínio das milhares de latas e tudo o mais que vai misturado para o "sepultamento" definitivo, irrecuperável e poluente no Delta.

E não é só aqui o garimpo. Famílias e famílias sobrevivem há anos pelo país afora desta maneira, pois de fato está aí sua sobrevivência. Só que o nível de indignação da sociedade torna-se menos tolerante com o escancaramento e conhecimento do problema.

Nesse sentido é importante a mobilização da sociedade pela mídia e UNICEF para soluções mais sustentáveis do ponto de vista ambiental e social para o lixo, insistindo na retirada de crianças desta atividade. Estamos em limiar de mudanças desse paradigma sob pena do caos, porque ele não se sustenta à luz da ética de preservação planetária e do respeito à dignidade humana.

Do ponto de vista da grande maioria do empresariado e principalmente de todos os cidadãos contribuintes, o interessante será pagar o justamente necessário a um comportamento ambientalmente mais adequado, com regras para melhor adequação da produção e destino global do nosso lixo, ampliando já os mecanismos de atenuação dos impactos nocivos que se produziu e produzirá ao meio ambiente e à saúde pública, e tentando ampliar ao máximo a vida útil desses enormes sitios impactados.

Circunstância inconteste da civilização, algumas localidades inteligentes do planeta projetam para breve a interrupção definitiva de destinação de lixo no solo, maximizando todas as demais alternativas disponíveis para o manejo de tão marcante problemática tanto da sociedade atual como futura.